"Não preciso de qualquer outra fé,
além da fé nos seres humanos." - Pearl S. Buck
Encerrou recentemente o Congresso Portugal 2005: Que Crianças? Que Famílias, que ao longo de três dias reuniu no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, dezenas de especialistas nacionais e estrangeiros de diversas áreas da infância e adolescência. Desde já ficam de parabéns todos os promotores do evento, sendo impossível não destacar o papel do prof. dr. Mário Cordeiro, pediatra, professor universitário, que tanto tem dado a Portugal e às suas crianças. Mas, quando pensamos no Portugal de 2005, só resta perguntar: que mais necessitam as nossas crianças, adolescentes e suas famílias? Muitas respostas foram ouvidas ao longo deste congresso, mas, entre outras coisas, talvez disto:- melhor planeamento familiar, para evitar, entre outras coisas, a enorme taxa de gravidez adolescente e o uso do aborto e da pílula do dia seguinte como forma de contracepção. Ter a ideia de que não é possível pensar a sexualidade sem a respectiva integração emocional (a maior condicionante de todos os comportamentos).- mais suporte às grávidas de risco, sobretudo às mais jovens e de mais frágil condição social e familiar (as que estão sozinhas ou sem estrutura familiar de apoio) e as em situação de desestruturação psíquica.- um período de licença de parto mais alargado, como em muitos outros países mais evoluídos, quer para as mães, quer para os pais (porque são estes tão esquecidos?), e a possibilidade de usufruir de tempos parciais de trabalho por opção, durante determinado período de tempo.- maior apoio aos pais, em centros de saúde e escolas (por exemplo), porque educar não é tarefa fácil e ninguém nasce ensinado, e porque, mais do que serem recriminados, há muitos que necessitam é de ser ajudados.- cidades, bairros e habitações de escala mais humanas, em que a relação com a natureza seja uma constante e não uma raridade ou uma mera questão de luxo. A actual (des)organização ambiental constitui um sério ataque à saúde mental das populações e tem tudo a favor para produzir um impacto grave no bem-estar dos mais novos e suas famílias.- mais tempo de relação entre todos, porque não é possível haver tempo de qualidade sem que exista quantidade, isto é, interagir, amar, conhecer o outro não é coisa que se construa à custa de um espaço reduzido de minutos ao final de um dia, quando todos estão demasiado cansados para se sentirem com ânimo e alegria para dar e receber. - locais mais seguros e de melhor qualidade para deixar os filhos, com alargamento das redes de creches e de jardins de infância, e que estas existam em espaços condignos com pessoal minimamente habilitado para o fazer e sem que se excedam os limites toleráveis para um número de crianças face ao de adultos.- amor incondicional dos seus pais ou dos adultos que delas cuidem e, em caso de impossibilidade manifesta de capacidade dos mesmos, delimitação rápida de um projecto de vida alternativo, coerente, e sem estar sujeito a repetidas inconstâncias. - presença de ambos os pais, se possível de forma constante e regular e, quando tal não for possível por separação ou divórcio, que seja mantida a possibilidade de a criança ou adolescente ter livre acesso a ambos, sem que se vejam directamente envolvidos em conflitos que não são os seus.- boa delimitação de regras e de limites, de forma a que a criança e o adolescente possam integrar as diferenças de gerações e de papéis e lidar com situações eventualmente de frustração, não correndo assim o risco de se organizarem numa estrutura omnipotente, que nos dias de hoje se pode já considerar um problema sério de saúde pública.- em situações graves de negligência, abuso ou maus tratos, intervenção atempada dos tribunais, com recurso a pareceres de especialistas da área, para que a justiça não seja algo sistematicamente adiado ou sem conexão com as verdadeiras necessidades emocionais das crianças.- utilização de estruturas de apoio residencial e ou educativo apenas em casos extremos e durante o menor tempo possível; contudo, partindo do princípio que algumas instituições deste género serão sempre possíveis, que estas se organizem num modelo compreensivo/reparador e não comportamental/punitivo (a maioria das que actualmente existem deviam, simplesmente, fechar).- escolas que saibam integrar e desenvolver as plenas capacidades dos seus alunos e que estejam suficientemente atentas aos que aí apresentam dificuldades de aprendizagem e de comportamento, pois actualmente não existem recursos eficazes para lidar com todos aqueles que têm problemas na área emocional (e já são muitos).- uma cultura de não violência, que as deixe protegidas da exposição maciça a imagens de uma agressividade e de uma sexualidade (perversas); esta última deveria ser integrada na vivência dos afectos, isto é, na sua plena representação emocional, e não apenas agida num plano comportamental. - um pacto televisivo que exclua o telelixo de horários de maior vulnerabilidade para as crianças e para os adolescentes, uma vez que a influência cultural da televisão é, nos dias de hoje, uma das maiores na construção da personalidade dos mais novos.- um controlo da venda de tabaco e de bebidas alcoólicas aos mais novos, para que começar não seja fácil e, sobretudo, não seja oferecido sem nenhuma defesa existente.- a possibilidade da prática de um desporto, pelo menos enquanto durar a escolaridade obrigatória, ou seja, entre os 6 e os 16 ou 18 anos de idade, uma vez que o desenvolvimento e a integração psicomotora são fundamentais para o bem-estar individual e social.- incremento do ensino das artes, nas suas vertentes plástica, dramática e, mais que tudo, musical, isoladamente ou num conjunto de educação para a estética.- desenvolvimento de um maior conhecimento das verdadeiras necessidades psíquicas das crianças e dos adolescentes por todos aqueles que com eles trabalham ou convivem e que assim avaliam o seu bem-estar e de suas famílias, incluindo médicos, assistentes sociais, educadores, professores, juízes, entre muitos e muitos outros.- possibilidade de atendimento em saúde mental (crianças, adolescentes e famílias), se necessário.- que os temas da infância e da adolescência entrassem para a agenda política já e agora neste Portugal 2005, porque o que há para fazer é muito, e qualquer resultado que se deseje demorará três gerações a consolidar.Para que (e citando o juiz-conselheiro Armando Leandro, que realizou a conferência de abertura deste encontro) nascer hoje em Portugal não seja uma mera fatalidade, mas sim um enorme privilégio. Oxalá que sim, porque, por enquanto, nada passa de uma questão de fé.
Pedro Strecht - Pedopsiquiatra
in Jornal Publico de 17.03.2005
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