Apesar do eventual mau gosto da metáfora, é inevitável constatar que a forma como o Partido Socialista conduziu o processo do referendo sobre o aborto foi claramente...abortiva. Não cometerei a injustiça de dizer que o foi deliberadamente, apenas por mesquinhos cálculos de táctica política, embora estes tenham acabado por prevalecer sobre as convicções e a vontade de solucionar um problema que se arrasta penosamente, desde há longo tempo, na sociedade portuguesa. Em todo o caso, a inépcia demonstrada pelo Governo e pelo grupo parlamentar do PS na condução do processo só podia ter levado ao impasse a que se chegou. O PS tinha a obrigação de prevenir as dificuldades técnicas e políticas que se colocavam ao timing desejado para o referendo, quer do ponto de vista do calendário e das nor- mas constitucionais existentes, quer no que se refere às posições do Presidente da República ou do maior partido da oposição, o PSD. Mas o PS não o fez. Fez mais - e pior. Introduziu uma confusão suplementar com a referência às dezasseis semanas não previstas na pergunta do referendo sobre o aborto. Voltou atrás, mas demasiado tarde. Foi assim que o PSD e Sampaio puderam lavar as mãos da incomodidade, remetendo o momento de superá-la para as calendas gregas. E é por isso que, como pretende Jorge Coelho, resta agora ao PS submeter-se aos desígnios iniciais do PCP e do Bloco, abdicando do referendo e fazendo aprovar uma nova lei despenalizadora no Parlamento.
O PS insiste em apresentar um novo projecto de referendo em Setembro, sujeitando-se a uma polémica bizantina e caricata sobre o tempo de duração das sessões legislativas. Mas quando se chega a este ponto, em que a árvore do formalismo especioso das controvérsias constitucionais oculta a floresta das questões políticas e sociais (como é o caso do aborto), só podemos chegar mesmo a outras soluções abortivas.
Vicente Jorge Silva - www.dn.pt de 06.05.05
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