A teimosia em querer pôr a direita e a esquerda como único critério e referência de tudo ou quase de tudo o que socialmente se é e se vive, denuncia, a meu ver, uma manifestação de pobreza sem resposta e uma miopia social que se vai tornando, em muitos casos, praticamente incurável. Coisa de velhos, não necessariamente de idade, que já pouco mais sabem raspar no fundo do tacho. Daí não sairão senão restos de um esturro fedorento ou de comida requentada.
Apareceu depois o centro a dividir espaços, como que a tentar equilibrar a nomenclatura tradicional e tornar-se alternativa ou terceira via à teimosia dos marrões, que deixaram de olhar para a frente para gastarem tempo e energias a olhar para o próprio umbigo. Também não se vai longe por aí.
Direito, esquerdo, será sempre o ritmo monótono de um marcar passo, por vezes sem sair do mesmo sítio e, por isso, sem horizontes novos, criados ou descortinados no meio do fumo incómodo, sempre gerado por quem não diz nada ou diz o já dito.
Agora a discussão é sobre cultura de direita ou de esquerda. Não vai longe de uma cultura de quintal ou de jardim, governado da janela, um parapeito fácil e agradável para falar de quem passa na rua, de quem vai com quem, de quem olha para cima ou de quem não levanta os olhos do chão.
É verdade que são as pessoas que geram cultura e enriquecem o património cultural acessível a todos. Se o fazem só para o seu clã, então não sei se poderemos falar ainda de cultura ou se teremos de dizer que o resultado do saber pessoal não vai além dos interesses de uma claque reduzida e fechada, que gosta de mastigar ou ruminar o que já sabe ou julga saber, mantendo a janela fechada aos ventos e saberes que sopram do lado contrário, ou de outros lados não ortodoxos.
Pôr rótulos no saber é fechá-lo no reduto pobre dos interesses pessoais ou de grupo. Faz pensar em esquizofrenia narcisista com dias contados.
Vai-se dizendo que ”abertura, cosmopolitismo, inserção no mundo” são objectivos de uma cultura de esquerda. Para gerar pessoas de esquerda e sócios para o clube, ou para enriquecer todos quantos, cada vez mais cidadãos de um mundo sem fronteiras, se desejam abrir, de modo livre e sem predeterminações de tribo, a um saber sem grilhões e a uma cultura sem rótulos?
O que dá valor e sentido à sociedade são as pessoas e estas nascem todas iguais, com capacidades e dons, todas com direito a lugar no espaço e no tempo que é seu e de todos os que coexistem no tempo. As coisas que valem, valem para todos. Se são apenas para alguns, ficam reduzidas no seu valor objectivo e no seu alcance humano e social. E todos ficam mais pobres, quer porque alguns as sonegaram, quer porque a outros não lhes foi permitido o acesso. Assim no campo cultural, económico, político, religioso. Em tudo o que os homens e mulheres têm direito e são livres de entrar. Há sempre quem goste de fiscalizar a porta para só a abrir aos que, de antemão, entram dispostos a bater palmas, aconteça o que aconteça.
A cultura que merece esse nome, é sempre um bem universal e só pode ser produzida por pessoas abertas, também elas universais e que reagem a fronteiras limitadoras, mesmo que não bafejadas por um Nobel de qualquer ramo do saber ou do agir. Cultura de direita ou de esquerda é cultura predeterminada e mutilada, produzida por gente de asas cortadas para voos curtos como os das aves de capoeira. Se algumas aves merecem ligação ao mundo cultural, pois que sejam as águias que sulcam os céus sem limites ou as aves de arribação, capazes de voar sem licença para que, em cada tempo próprio e em cada lugar propício, deixarem aqui e ali, para todos, o ar da sua graça e a expressão da sua liberdade.
António Marcelino, Bispo emérito de Aveiro
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