sexta-feira, setembro 29, 2006

O "aborrecimento metafísico"

Amigos, na realidade sempre admirei os artigos da Srª. Esther Mucznik, mas sinceramente este está fabuloso e com uma excelente reflexão sociológica e religiosa, acertou na "mouche".
Para lêr e reflectir sobre o papel da religião na sociedade contemporânea para todos nós. É muito na continuação da tão falada aula de Bento XVI em Ratisbona.

No Ocidente europeu a religião tem má fama. Com a condescendência própria de quem já ultrapassou essa fase de obscurantismo, rimo-nos dos americanos que continuam a afirmar que "in God we trust", não entendemos os polacos que continuam - por enquanto - a encher as igrejas, olhamos com um misto de espanto e desprezo para os que em Portugal, França ou Itália continuam, apesar de tudo, a procurar a religião. O que os move?, é a pergunta que inevitavelmente aflora à nossa mente racional e racionalista.
Qual a razão deste desprestigiar da religião? Terá a ver com a separação entre o poder político e o poder religioso, com a autonomização da sociedade em relação à religião e progressiva secularização da mesma, iniciadas no tempo do Renascimento e das reformas protestantes e que conheceu na época das Luzes um momento decisivo? Estará a perda de prestígio da religião relacionada com a perda de poder político? Ou na incapacidade das instituições religiosas em se adaptarem a esta nova situação?
Uma das consequências da modernidade consistiu na passagem de um mundo, cujo fundamento social era a religião, a um outro no qual a sociedade passa a encontrar nela própria o seu fundamento, admitindo apenas como seu soberano os seus próprios representantes. O que Max Weber denominou de "desencantamento do mundo" não foi apenas uma simples separação institucional entre o religioso e o político, mas sim o processo através do qual a racionalidade foi conquistando progressivamente todas as esferas da vida: as crenças passam a ser consideradas ilusões, proclama-se a liberdade individual contra o dogmatismo e contra "a autoridade do eterno ontem". No mundo moderno, a religião deixou de orientar a existência colectiva, tornou-se uma opção individual entre outras.
A ideia positivista de que está ao alcance do homem e da ciência compreender, controlar e manipular os fenómenos naturais para melhorar a condição humana, conjugada com o materialismo marxista para quem a história se faz basicamente pela economia e pela política - subalternizando a cultura e a espiritualidade -, assim como a convicção radical nascida em França, em 1789, de que "revolução" significa ruptura com o passado, tudo isso levou ao surgimento do que se pode chamar um humanismo secular, substituindo-se às religiões. "O homem europeu", diz o teólogo católico George Weigel, "convenceu-se de que para ser moderno e livre tem de ser radicalmente secular." Tem de relegar para o museu das velharias a fé religiosa, assimilada a tudo o que é antiquado, bafiento, retrógrado e castrador da criatividade humana. Nomeadamente procurou apagar os fundamentos judaico-cristãos da civilização europeia, ajudando deliberadamente a esquecer a sua própria história - o debate a propósito do preâmbulo da Constituição Europeia é disso um exemplo esclarecedor.
Se olharmos os manuais escolares - que são sempre um barómetro da ideologia dominante numa determinada sociedade - apercebemo-nos desta realidade. Em Portugal, e creio que não será muito diferente noutros países europeus, eles praticamente omitem o papel das religiões. Nos anos decisivos da formação do adolescente - dos 11 aos 15/16 anos - não há nos manuais de Língua Portuguesa, de História e de Formação Cívica nenhuma introdução séria ao fenómeno religioso, mesmo da religião cristã, onde as poucas explicações pecam pelo simplismo e falta de rigor. O islão surge sob a forma simpática de lendas que alimentam a mitologia, nomeadamente de amores impossíveis entre cristãos e mouros e de relatos de bravura e honradez nos combates pela Reconquista. Ou então sob a forma de folclóricas encenações de casamentos árabes... Quanto ao judaísmo, é o que sai mais maltratado, em primeiro lugar pela ausência: nos manuais escolares, a religião judaica simplesmente não existe, nem como religião, nem como presença histórica, restam apenas os preconceitos, esses sim amplamente veiculados, e uns vagos textos alusivos ao Holocausto. E inevitavelmente, o relacionamento promíscuo com o conflito israelo-palestiniano. De uma forma geral, a religião surge como marginal à história da humanidade, a não ser como causa de guerras e atrocidades, e é definitivamente relegada para as aulas de Religião e Moral.
Os manuais escolares são apenas um reflexo do que se passa ao nível da sociedade: a religião eclipsou-se do espaço público e sobretudo do debate público, tornando-se progressivamente numa questão apenas do foro privado e individual, amputada da sua dimensão histórica e colectiva. Ou seja, de um lado a sociedade, o homem, a história, a razão e o progresso; do outro a fé que, privada da sua seiva, se vai estiolando ou pervertendo. Se há algo no discurso recente do Papa Bento XVI que nos interpela, é a condenação dessa marginalidade a que a humanidade progressista ocidental confinou a religião, neutralizando-a e tornando-a "inofensiva", porque esvaziada do seu conteúdo vivo e interveniente. Com duas consequências: em primeiro lugar, o de dar espaço ao extremismo religioso, em reacção radical à secularização; em segundo, tornando mais difícil o diálogo inter-religioso, porque só uma sociedade que dá espaço ao fenómeno religioso é capaz de o travar.
O século XX desmentiu todas as perspectivas radicalmente optimistas de um mundo convencido da sua auto-suficiência: duas grandes guerras, o Holocausto, o Gulag, milhões de mortos ao serviço de ideologias seculares, abriram uma profunda crise civilizacional e moral da Europa contemporânea, tornando-a incapaz de se defender, de defender os seus valores e a sua história, incapaz sequer de assegurar a sua demografia. O humanismo secular está em crise e, à medida que vai perdendo o fôlego, é previsível que a religião ocupe um lugar de maior relevo na sociedade. A questão que se coloca é: que religião? Não haverá alternativa entre o fundamentalismo literal e rigorista e o secularismo racionalista? Não haverá alternativa entre a teocracia e o laicismo radical? Acredito que sim, embora, nos tempos que correm, não pareça fácil. Mas esse é, em minha opinião, o caminho e a reflexão que tem de ser feita pelos pensadores e dirigentes religiosos.
Não se trata obviamente de regressar ao mundo pré-moderno, nem de pôr em questão a separação Estado-religião. A separação de poderes é uma característica da civilização ocidental e a tensão dela decorrente é fonte fecunda de criatividade. Não se trata, pois, de misturar o que não deve ser misturado. Trata-se sim de reflectir sobre o espaço e o papel da religião na sociedade, na sua moralização e elevação espiritual individual e colectiva. Se há um facto inquestionável na condição humana, é que uma comunidade não pode sobreviver a uma existência sem sentido, num universo desprovido de significado. O racionalismo filosófico é incapaz de fornecer esse significado e muito menos um código moral. Mas, no mundo ocidental, o código ético herdado da tradição judaico-cristã tem vindo a atenuar-se e a tornar-se irrelevante: o resultado é a confusão moral, o relativismo e a impotência em defender os seus próprios princípios.
Demasiado arredada do mundo real, a religião deve, pelo contrário, participar no espaço público, não apenas como guardiã indispensável da tradição, mas também com uma intervenção intelectual e social, ética e espiritual adequada à realidade de hoje. Caso contrário não faltarão alternativas para ocupar o vazio provocado pelo que David Hart chama de "aborrecimento metafísico".
Investigadora de assuntos judaicos
Um artigo de Esther Mucznik – in Jornal Publico de 2006.09.29


Comentem !!!

Enfim, coisas da vida ...

3 comentários:

Ver para crer disse...

Gostei do blog e vou linká-lo.

Quanto a este artigo, que já conhecia, ajuda-nos a reflectir sobre o papel da religião ou religiões nas nossas sociedades ocidentais demasiado presas a um laicismo empobrecedor.

Pe.T.C. disse...

interessante...voltarei!

RPM disse...

mas camarada amigo!

realtivamente a esta questão, penso que a religião sendo imposta às pessoas o seu ideal será sempre ofuscado!

penso que com a liberdade de escolha, a aceitação da Fé e de uma religião será mais verdadeira, mais aproximada entre o indivíduo e a Igreja.

eu por mim posso falar...o Mundo Moderno fez abanar os alicerces da casa mal construída que em todos nós existia..e agora, esta casa sairá mais fortificada

Abraço

RPM

Lilypie First Birthday tickers Lilypie